30 de janeiro de 2012

Crime

(do diário de Laura Angelim)

Os arquivos da Agência sempre estiveram abarrotados com relatos de velhas casas mal-assombradas e não era rotina deslocarem alguém para lugares remotos devido à mera suspeita de um poltergeist. Quando se tratava da família de um conselheiro reformado, no entanto, abriam-se exceções.

A propriedade ficava no meio do nada. A responsável pelo contato me recebeu pessoalmente, no momento em que agasalhava um idoso sobre uma cadeira de rodas — seu pai, o conselheiro aposentado da Agência, completamente paralisado após um derrame.

Os moradores precisavam deixar a residência. Era parte do procedimento. Saíram em direção ao jardim, deixando-me sozinha. Então, tirei o equipamento da bolsa e comecei a trabalhar.

O leitor de freqüência não indicava o menor sinal de presença ectoplásmica. O lugar está limpo, pensei. Andei pela sala de estar, depois através de um corredor, abrindo as portas dos dois lados, na expectativa de que a leitura do aparelho sofresse alguma alteração, mas nada aconteceu.

O final do corredor era escuro e eu tateava a parede em busca do interruptor. Droga! Deixei o leitor de freqüência cair. Quando me abaixei, clique! Uma maçaneta se destravou sozinha. Em seguida, a porta se abriu devagar, rangendo.

O leitor foi de zero a cem em um segundo. Vamos lá, Gasparzinho... O que vai ser? Peguei o farolete na bolsa e entrei no que parecia um depósito, pronta para expulsar a assombração com um facho de luz. Sim, fantasmas odeiam luz.

Nenhum contato visual. Apontei o farolete em todas as direções, mas a presença se fora.

De repente, som de vidro se estilhaçando às minhas costas. No piso logo abaixo de uma prateleira, encontrei um porta-retratos quebrado. A foto nele mostrava três pessoas: o velho conselheiro, sua filha, ainda adolescente, e outra menina da mesma idade.

Sobre uma prateleira logo acima, um álbum empoeirado estava a ponto de cair também. Entre fotos de família, algumas do velho sozinho com a garota.

A inteligência da Agência investigou o caso e acabou descobrindo que a menina era uma vizinha que desaparecera e fora dada como morta anos atrás. A perícia encontrou seus ossos enterrados no terreno da propriedade e o velho foi considerado culpado pelo assassinato.

Dado seu estado, não foi feita nenhuma acusação formal contra ele. O ex-conselheiro foi deixado na casa.

Soube mais tarde que a filha o abandonou. E o fantasma não.

31 de julho de 2011

Halloween

Me chamo Orloff e era minha noite de folga. Tinha saído para beber. Passavam das três e meus olhos já não eram mais os mesmos. Enxergavam apenas o suficiente para perceber os sorrisos provocantes que a ruiva do vestido preto dirigia a mim do outro lado do balcão.

O namorado ainda não se dera conta. Safada... Chamei o garçom e pedi que lhe servisse outra dose do que quer que estivesse bebendo. O homem relutou, antevendo a confusão, mas minha nota de cinqüenta o fez reconsiderar.

Uísque com energético. Além de safada, devia estar bem-disposta. O namorado se enfureceu com meu atrevimento. Virou-se e me encarou, a pele descorada e os olhos vermelhos. Maldito vampiro! Não esperei para ver os caninos; fui cambaleando até lá e acertei-lhe uma garrafada no nariz.

Ele desabou no chão, urrando e se contorcendo sob os gritos aterrorizados da ruiva, seu rosto se cobrindo de vermelho com o sangue. Já o olho esquerdo, de repente era tão castanho quanto o meu. Com o golpe, devo ter arrancado a lente do palhaço fantasiado.

23 de março de 2011

Cafeína

(do diário de Laura Angelim)

Um casal de amigos foi à África, ver a Copa. Voltaram com presentes e me trouxeram uma máscara zulu horrível. Não teria pendurado aquela coisa na parede da sala por vontade própria, mas os pombinhos tiveram um surto de freqüentar meu apartamento e não me deram escolha. Hoje, porém, me dei conta de que havia algo errado com aquela máscara.

Tudo começou com a resistência do chuveiro. Não tinha nem uma semana e queimou com um estouro durante meu banho — acredite, enxaguar o cabelo na água fria logo pela manhã em meados de julho afeta sua saúde tanto quanto seu humor.

Tomei meu café da manhã entre espirros. Por causa de um deles, aliás, derramei chocolate quente no tapete novo.

O dia dava indícios de que algo não estava bem. No trabalho, por exemplo, perdi um relatório de duas páginas com uma queda de energia. Houve também um incidente no vestiário da academia, mas foi embaraçoso e não quero falar a respeito.

Voltei para casa certa de que a máscara era enfeitiçada. Entrei com cuidado para, sei lá, não escorregar e bater a cabeça, ou ter tempo de me esquivar no caso de algo cair sobre mim. Queria arrancar a coisa da parede! Inacreditavelmente, no entanto, ela simplesmente não saiu do lugar quando a puxei com toda minha força. Pensei então em quebrá-la, mas uma porção de golpes com o martelo de carne também não surtiu nenhum efeito.

Passei algum tempo sentada, olhando para o sorriso malicioso talhado na madeira e atirando as pedrinhas ornamentais do vaso na minha estante em sua direção. Acertei algumas na boca e uma no olho esquerdo. Não me surpreenderia se ela começasse a cuspi-las de volta em mim.

Fui fazer um café. Não podia deixar aquele objeto lá. Era contra o regulamento. Se não conseguisse remover a máscara sozinha, teria que ligar para a Agência e pedir que mandassem um especialista. Nesse caso, era uma vez noite de sono! Os caras colocariam minha parede no chão se precisassem.

Encarei a máscara e tomei um gole do café. Péssimo! E o riso de madeira parecia debochar de mim. Perdi as estribeiras e joguei o conteúdo da xícara através da boca da máscara.

As luzes do apartamento piscaram.

Quando a energia se normalizou, a máscara africana tombou sozinha no chão e se espatifou.

Não sabia se ficava mais aliviada por poder dormir ou ofendida por causa do café.

15 de julho de 2010

Detalhe

Me chamo Orloff e admito que a princípio achei aquilo tudo ridículo. Ligaram de uma escola pública depois que alguns pirralhos em frenesi juraram ter visto a loira do banheiro. Já era a segunda vez naquele mês. Por via das dúvidas, me mandaram checar.

Em pé no banheiro quebrado, com os sapatos encharcados e o nariz protestando contra o fedor do lugar, pensava a respeito das loiras do banheiro que já havia encontrado. Todas ficavam ótimas molhadas, mas nunca com água da privada. Tateei o bolso do casaco atrás do crucifixo e achei melhor começar o ritual de invocação para me ver livre daquela imundície logo.

Três batidas na porta, uma Ave Maria, três palavrões — minha parte favorita — e um chamado carinhoso:

— Sai logo daí, biscate!

Nada. Apenas o som de gotas de alguma torneira precisando de reparo. Outro alarme falso. Alguém na Agência precisa tomar providências a respeito desses trotes, pensava irritado, enquanto aproveitava para aliviar a bexiga. Ergui o zíper e dei a descarga.

A descarga!

A porra do encantamento estava incompleto. Um pouco de água desceu através do cano, mas logo um refluxo aumentou a inundação no chão e me afastei bem a tempo de evitar algo saindo da privada. A loira. Cravei o crucifixo em sua pele cinza e escamosa, ao que a monstrenga escancarou a boca e os olhos de modo a me lembrar repulsivamente um peixe. Enquanto ela ressecava e seu grito desaparecia, tentava não me esquecer de comprar cigarros. Precisava de uma tragada.

5 de abril de 2010

O leprechaun

(do diário de Laura Angelim)

Nunca gostei de circos. Ainda assim, quando pequena, meu pai insistia em me levar sempre que algum ia à nossa cidade. Eu teria me negado na maior parte das vezes, não fossem suas promessas de me comprar algodão doce. Passados tantos anos, a Agência me colocou outra vez em meio às lonas e crianças escandalosas.

O trabalho começou do lado de fora da tenda principal, na fila para desafiar o mágico anão. Eu melava os dedos com açúcar — algodão doce, claro — e tentava não dar ouvidos aos comentários que as pessoas faziam a respeito da aparência do mágico. Conforme minha vez se aproximava, pude observar por mim mesma aquele homenzinho enrugado, de barba e cabelos tão ruivos, sua cartola verde-musgo e um cachimbo pendendo no canto da boca. O casaco preto e as luvas certamente não constituíam um bom disfarce. Além do mais, o banquinho sobre o qual se equilibrava denunciava seu tamanho diminuto, improvável para um homem.

No caixote à frente do mágico, três canecas emborcadas e alinhadas esperavam que alguém escolhesse alguma delas para esconder uma moeda de um real. Feito isso, o anão trocava as canecas de lugar a uma velocidade impressionante, de modo a confundir seu desafiante que precisava apontar sob qual caneca estava sua moeda. Todos, sem exceção, davam seu lugar ao próximo da fila frustrados e sem seu dinheiro.

Ainda terminava meu algodão doce quando o rapagão à minha frente, inconformado por não ter conseguido adivinhar, insistia ao mágico que revelasse qual era a caneca certa, o que o homem recusava com um sorriso torto.

Lambi o melado dos dedos, saquei a arma e estourei as três canecas. Alguns escandalosos gritaram, mas descobriu-se não haver moeda alguma sobre a mesa. O mágico olhou-me horrorizado quando apontei a arma em direção à sua cabeça. Bam! Acertei-lhe a cartola, que caiu, espalhando ruidosamente alguns punhados de moedas pelo chão.

Mandei o trapaceiro erguer os braços e o revistei em busca do passaporte. Visto vencido, como se esperava. Levei-o dali, para que fosse interrogado e depois deportado para a Irlanda. As pessoas disputavam as moedas do chão quando um arco-íris iluminou de repente o céu azul, sem qualquer sinal de chuva.

17 de fevereiro de 2010

Parada

Me chamo Orloff. Meu trabalho é caçar a escória das trevas que infernizaria você, caso tivesse a chance. A guitarra é meu hobby.

Ontem à noite toquei em uma pocilga até de madrugada e dirigia para casa quando meu celular acendeu. Mensagem: Zumbi no cemitério norte. Sei que é sua folga, mas vá averiguar, sim? A cerveja na sexta é por minha conta. Ass.: Martha. Piada! A Agência havia acabado de contratar meia dúzia de moleques novos e eu tinha que ir atrás de zumbis. Desviei o caminho e em questão de minutos estacionei em uma rua mal-iluminada ladeada pelo muro pichado do cemitério.

Pular para dentro foi relativamente fácil. Difícil foi evitar que a capa da guitarra se ralasse. Sim, levei a guitarra comigo. Ajuda a evitar eventuais problemas com coveiros; um gótico renegado seria enxotado do cemitério, no máximo, enquanto um caçador de zumbis ganharia um passe para o manicômio. Procurei inutilmente por traços do morto-vivo durante tempo suficiente para pôr fim à minha paciência. Pouco antes de decretar alarme falso e ir embora, repetidos sons de batida me levaram até onde eu queria.

O zumbi se batia contra a parede de um mausoléu e pareceu não se dar conta da minha presença. Avancei confiante quando algo me agarrou pelo tornozelo e me derrubou.

Havia mais um deles.

Enquanto ele me puxava com força e escancarava a boca, salivando, o primeiro se voltou para mim arreganhando os dentes podres em um riso debochado. Os malditos haviam me enganado. Segurei a guitarra pelo braço e bati na cabeça do zumbi até que me soltasse. Quando o outro me alcançou eu já estava de pé e bati nele até muito depois de ele cair, inerte. Com o que me derrubou fui mais breve e esmaguei-lhe o crânio de uma vez.

Trabalho feito, acendi um cigarro e voltei para o carro me decidindo sobre qual guitarra nova faria a Agência me comprar. E eles que limpassem a sujeira no cemitério.

14 de fevereiro de 2010

Justificativas

Venho aqui compartilhar certas revelações feitas a mim durante uma noite no bar que costumava freqüentar. Quero deixar claro que as duas pessoas envolvidas não me pediram silêncio — embora, confesso, também não tenham exatamente me autorizado a falar a respeito. De todo modo, acredito que não se incomodariam se mais alguém soubesse o que me contaram.

Quanto ao diário “roubado”, espero que sua dona aceite minhas sinceras desculpas e entenda que se tratou de um equívoco causado por nosso consumo excessivo de álcool. O diário permanece intacto para ser devolvido assim que houver uma oportunidade e as páginas publicadas aqui a partir dos próximos dias, intercaladas com testemunhos orais, serão somente aquelas que a própria escritora leu para mim.